quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Indústria Ferroviária: Vias de Patrimonialização

I. CONTEXTO INTERNACIONAL


a) Valor Patrimonial

A implementação dos conceitos de patrimônio industrial e patrimônio ferroviário, constituiu uma aquisição lenta e gradual por parte da sociedade contemporânea, que decorreu de um longo processo de reflexão crítica, necessário ao reconhecimento dos valores associados a estes bens culturais e que determinariam a sua salvaguarda, conservação e valorização. Nesse sentido, a noção de valor, elemento determinante para a definição de patrimônio cultural, surge intimamente associada aos conceitos de identidade e memória, fundamentais para a compreensão da necessidade de salvaguardar determinados testemunhos da cultura material.1
A identidade de um povo pode, assim, ser definida através do seu sistema de valores e materializada por intermédio dos bens culturais que a representam: entendidos como objetos de caráter excecional e insubstituível, que congregam a pertença a um passado comum, neles reside parte da memória coletiva. O conceito de bem cultural implica, portanto, a formulação de um juízo de valor suportado, entre outros, por critérios históricos ou estéticos, e que explicitam a importância de um determinado objeto para a manutenção da identidade e memória da comunidade em que o mesmo se insere.
Neste particular, o reconhecimento do valor histórico inerente à industria ferroviária, derivaria de uma mudança de atitude das principais companhias ferroviárias face ao seu acervo, sobretudo devido aos constrangimentos financeiros sentidos a partir de 1914, com a impulsão da Primeira Guerra Mundial. Consequentemente, tanto na Europa como no Brasil, diversas redes ferroviárias seriam reorganizadas, mediante o estabelecimento de contratos de concessão única com o estado, cabendo às companhias nacionalizadas a incorporação dos bens das empresas dissolvidas.
A sobrelotação de material rodante e outros equipamentos, na maior parte dos casos antigos e obsoletos, conduziria à constituição das primeiras coleções ferroviárias, inicialmente promovidas por grupos de entusiastas maioritariamente constituídos por antigos funcionários e que, motivados pelo brio profissional de terem servido as companhias agora extintas, desenvolveram uma intensa atividade de prospecção patrimonial (Custódio, 2011: 12-13). Este movimento associativo foi particularmente intenso na Inglaterra e conduziria ao aparecimento dos primeiros museus inteiramente dedicados ao patrimônio ferroviário, de que é exemplo o York Railway Museum, precursor do National Railway Museum, criado em 1927.
Propulsoras de movimentos de salvaguarda que, progressivamente, seriam adotados pelos organismos públicos em função do processo de nacionalização das principais ferrovias europeias, também as mais importantes companhias se empenhariam na constituição de museus de gestão empresarial, essencialmente voltados à instrução corporativa, e cujos compromissos de índole cultural eram geralmente coincidentes com as comemorações de determinada efeméride ferroviária (Ribeiro, 2010: 26).
As preocupações em torno da preservação dos veículos históricos ferroviários se intensificaram a partir de 1940, com a impulsão da Segunda Guerra Mundial, após a desativação de algumas das mais emblemáticas locomotivas de tração a vapor e essencialmente devido à crise de combustíveis que assolou a Europa nesta época, dada a redução drástica das importações de carvão pelas dificuldades e custos acrescidos que o seu transporte acarretava para as regiões mais afastadas dos centros de extração. Não obstante, o desenvolvimento tecnológico da indústria ferroviária promoveria a substituição progressiva da tração a vapor pela eletrica e diesel, dado o seu maior rendimento no transporte de passageiros e mercadorias, sobretudo se considerarmos o impacto financeiro, a partir da década de 1950, da concorrência rodoviária e da aviação comercial no setor ferroviário (Cordeiro, 2000: 404).


b) Arqueologia Industrial

Tornava-se, portanto, necessário preservar os vestígios tecnológicos do passado, cuja ameaça de desaparecimento era permanente, instituindo-se por toda a Europa importantes museus ferroviários, de âmbito nacional, tais como o Spoorwegmuseum (Ultrecht, 5 de novembro de 1954), o Cité du Train (Mulhouse, 12 de junho de 1971), o National Railway Museum (York, 27 de setembro de 1975) ou o Museu del Ferrocarril (Madrid, 30 de março de 1980), e que posteriormente irão inspirar outros exemplos para além da realidade europeia. 
Estes museus seriam estabelecidos em instalações ferroviárias desativadas, mas reutilizadas num sentido afim ao da sua atividade original - geralmente estações, depósitos de máquinas, rotundas de locomotivas ou espaços oficinais de reparação de material rodante -, constituindo-se assim importantes complexos museológicos, providos da estrutura viária necessária à movimentação de veículos e complementada pela manutenção das infraestruturas e equipamentos constituintes desses complexos (González-Varas, 1999: 60-67).
Simultaneamente, em Inglaterra, era implementada uma nova linha de estudos, lecionada por Michael Rix (1913-1981) na Universidade de Birmingham e caracterizada pela preservação dos vestígios materiais da industrialização, antes da sua perda irremediável. Despoletada por um sentimento nostálgico em torno das tradições industriais britânicas - após as destruições massivas provocadas pelos bombardeamentos da II Guerra Mundial, cujos alvos estratégicos eram recorrentemente as unidades fabris - nascia assim a arqueologia industrial e, com ela, as primeiras iniciativas in situ para a conservação de monumentos industriais (Ribeiro, 2010: 23-26).
De acordo com González-Varas (González-Varas, 1999: 60-67), o associativismo local teve, em Inglaterra, a maior importância para o desenvolvimento de uma consciência de cidadania em favor do patrimônio industrial, consubstanciando-se na instituição de várias associações locais para a defesa da arqueologia industrial. Tal é exemplo do Industrial Archeological Research Committee (IARC), fundado no ano de 1959 pelo Council of British Archaeology (CBA), com o objetivo de alargar esta nova área arqueológica ao Inventário dos Monumentos e Sítios Industriais. Esta atividade vinha sendo desenvolvida pelo CBA desde 1945 mas, a partir de 1963, passa a ser gerida pelo Industrial Monuments Survey (IMS), serviço de catalogação criado na dependência do Ministry of Public Buildings and Works e que viria a gerar um índice básico de registos conhecido por National Record of Industrial Monuments.


c) Conceito de Bem Cultural

Ao nível da indústria ferroviária, a assinatura, em julho de 1947, do Plano de Recuperação Europeia ou Plano Marshall, aplicado pelos Estados Unidos na reconstrução dos países aliados da Europa nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial, implicaria profundas alterações no transporte ferroviário, determinando a modernização das suas infraestruturas, equipamentos e redes de circulação (Custódio, 2011: 43). É também neste contexto de pós-guerra que, a 14 de maio de 1954, em Haia, é assinado o primeiro instrumento normativo, de âmbito internacional, significativo para a proteção do patrimônio cultural: a Convenção de Haia para a Proteção da Propriedade Cultural em caso de Conflito Armado. 
A Convenção de Haia, convocada sob o patrocínio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), foi também o primeiro documento oficial a empregar o termo bem cultural, distinguindo-o nos seguintes itens (art. 1º):
  • a) Os Bens Móveis e Imóveis, que apresentam uma grande importância para o patrimônio cultural dos povos, como os monumentos de arquitetura, de arte ou de história, religiosos ou laicos, os sítios arqueológicos, os conjuntos de construções que, enquanto tais, apresentam um interesse artístico, histórico ou arqueológico, assim como as coleções importantes de livros, de arquivos ou de reprodução de bens definidos precedentemente.
  • b) Os Edifícios, cujo destino principal e efetivo é o conservar ou expor os bens culturais móveis definidos no parágrafo a), como os museus, as grandes bibliotecas, os depósitos arquivísticos, assim como os refúgios destinados a acolher, em caso de conflito armado, os bens culturais móveis definidos no parágrafo a).
  • c) Os Centros, que compreendem um número considerável de bens culturais, que são definidos nos parágrafos a) e b), chamados centros monumentais.
A difusão do conceito de bem cultural tem sido amplamente favorecida pela UNESCO, que reconhece que o significado de alguns bens culturais alcança ampla relevância internacional. Tal significa que diversos monumentos, cidades, conjuntos ou lugares históricos são obras excecionais e testemunhos insubstituíveis, cuja perda ou deterioração empobreceria o conjunto da humanidade. Estas declarações foram instituídas e reguladas através da Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, estabelecida no seguimento da 17ª Assembleia Geral da UNESCO, ocorrida em Paris entre 17 de outubro e 21 de novembro de 1972, e em resposta a uma preocupação crescente sobre o estado de conservação do património mundial. Do ponto de vista concetual, a Convenção apresentou a novidade de associar bens culturais e bens naturais, enquanto conceitos complementares, considerando que a identidade cultural dos povos decorre do meio natural em que estes se inserem. Neste tratado inédito, países de todo o mundo reconheceram a necessidade de proteger determinados bens patrimoniais, dotados de valor universal excecional e cuja responsabilidade carece da cooperação da comunidade internacional como um todo.2
A partir da Convenção de 1972, seriam constituídos vários instrumentos legais com vista à Salvaguarda, Conservação e Valorização do Patrimônio Cultural, mas agora ampliados a toda uma nova ordem de valores, nomeadamente históricos, estéticos, naturais, sociais, técnicos, científicos e industriais, tendência que Françoise Choay designou por “complexo de Noé”.3
O conceito de patrimônio cultural adquire então uma nova função social, de caráter inclusivo, numa tentativa de clarificação da identidade cultural dos povos e da memória coletiva da humanidade. Admitindo-se a diversidade social e cultural subjacentes à própria definição de patrimônio cultural e a sua correspondente autenticidade perante a comunidade internacional, rapidamente se assiste a um alargamento do espectro de bens culturais a salvaguardar, extensível às suas mais diversificadas manifestações patrimoniais, a um nível material e imaterial.


d) Carta de Nizhny Tagil

É à luz deste novo enquadramento que deve ser entendida a Carta de Nizhny Tagil sobre o Patrimônio Industrial, aprovada na sequência da Assembleia Geral do International Committee for the Conservation of the Industrial Heritage (TICCIH)4, de 17 de julho de 2003. Este documento, posteriormente apresentado ao Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS) para ratificação e aprovação definitiva pela UNESCO, define o conceito de patrimônio industrial5 e respetivos valores intrínsecos associados, ressalvando a importância do seu estudo e salvaguarda (art. 1º):

"O patrimônio industrial compreende os vestígios da cultura industrial que possuem valor histórico, tecnológico, social, arquitetônico ou científico. Estes vestígios englobam edifícios e maquinaria, oficinas, fábricas, minas e locais de processamento e de refinação, entrepostos e armazéns, centros de produção, transmissão e utilização de energia, meios de transporte e todas as sua estruturas e infraestruturas, assim como os locais onde se desenvolveram atividades sociais relacionadas com a indústria, tais como habitações, locais de culto ou de educação."

Compreendendo o período histórico que se estende desde os inícios da revolução industrial, a partir da segunda metade do século XVIII, até aos nossos dias, sem negligenciar o estudo das técnicas de produção englobadas pela história da tecnologia, a Carta atribui ao patrimônio industrial um importante “valor social como parte do registo de vida dos homens e mulheres comuns e, como tal, confere-lhes um importante sentimento identitário”, acrescentando que “estes valores são intrínsecos aos próprios sítios industriais, às suas estruturas, aos seus elementos constitutivos, à sua maquinaria, à sua paisagem industrial, à sua documentação e também aos registos intangíveis contidos na memória dos homens e das suas tradições” (art.2º).
Apelando à cooperação internacional como medida para a conservação proativa do patrimônio industrial, nomeadamente através de iniciativas coordenadas e da partilha de recursos, o TICCIH defende que os mecanismos de proteção legal devem zelar pela autenticidade histórica e integridade funcional dos sítios, promovendo-se simultaneamente a preservação de registos documentais, arquivos empresariais, plantas de edifícios, assim como de exemplares de produtos industriais (art. 4º e art. 5º). 
Neste particular, os museus industriais e técnicos constituem meios importantes para a interpretação do patrimônio industrial, através de uma ação consertada com as autoridades públicas no estabelecimento de itinerários regionais e internacionais, capazes de esclarecer “as contínuas transferências de tecnologia industrial e o movimento em larga escala das pessoas que as mesmas podem ter provocado”, promovendo-se simultaneamente o turismo nas regiões industriais, como medida importante de salvaguarda (art. 7º). A título de exemplo, cite-se o trabalho que, neste sentido, tem vindo a ser desenvolvido pelo European Rout of Industrial Heritage (ERIH), que atualmente representa mais de 1315 sítios industriais em 345 países europeus, estabelecidos numa rota internacional que inclui 19 itinerários regionais temáticos, e através dos quais é possível conhecer a história industrial europeia.6


e) Carta de Riga

Progressivamente, assiste-se a uma subdivisão do patrimônio industrial em torno de diferentes setores de atividade que, naturalmente, se convertem em diferentes categorias patrimoniais. É deste modo que se processa, ao nível dos instrumentos legais de proteção, a emancipação do patrimônio ferroviário face ao património industrial, sendo o conceito definitivamente soldado na Carta de Riga, aprovada pela European Federation of Museums and Tourist Railways (FEDECRAIL) em Assembleia Geral de 16 de abril de 2005. Este documento apresenta-se como uma declaração orientadora das políticas de salvaguarda, conservação e valorização do patrimônio ferroviário, dotando-o de um valor universal, enquanto testemunho de uma atividade com profundas implicações históricas e sociais na herança cultural mundial, e que por esta razão deve ser preservado (Carta de Riga, 2005: objetivo).
A partir da publicação desta Carta, o patrimônio ferroviário passa a ser considerado como um conceito abrangente e multidisciplinar, associando-se ao sistema ferroviário como um todo, nas suas múltiplas vertentes: histórica, geográfica, política, econômica, social, antropológica, científica, técnica e industrial. Paralelamente, adota-se uma lógica de gestão patrimonial integrada na salvaguarda dos complexos ferroviários, articulando vias, material rodante, estruturas edificadas, correspondentes equipamentos industriais e a própria paisagem natural redescoberta pela rede ferroviária (Carta de Riga, 2005: definições). Por outro lado, é igualmente importante considerar outras manifestações específicas da cultura ferroviária, nomeadamente a análise das ideologias, dos estados de vivência e das mudanças de percepção ou de mentalidade subjacentes ao impacto provocado pela ferrovia numa determinada comunidade.



[Próximo]



Notas
1. O conceito de valor, na sua relação com o património cultural, é primeiramente abordado na obra de Aloïs Riegl (1858-1905), historiador de arte austríaco que, no ano de 1903, publica em Veneza um célebre ensaio intitulado “Culto Moderno dos Monumentos: Características e Origem”. A publicação desta obra pressupõe uma profunda reflexão crítica sobre a noção de monumento histórico e sobre os valores que a sociedade contemporânea reconhece nos monumentos, nomeadamente: valores rememorativos (valor de antiguidade, valor histórico e valor rememorativo intencionado) e valores de contemporaneidade (valor instrumental e valor artístico). A análise de Riegl revela também os conflitos presentes entre os diferentes valores, em função do estado de conservação do monumento e do seu respetivo enquadramento social e cultural. 
2. De acordo com González-Varas (González-Varas, 1999: 44), a necessidade de contar com um conceito mais amplo e integrador de patrimônio cultural, desenvolveu-se sobretudo a partir da década de 1950, quando muitos países pertencentes ao então designado “terceiro mundo” iniciariam um processo de busca e definição da sua própria identidade cultural. Efetivamente, os signos de identidade cultural de grande parte destes povos não podiam ser do mesmo tipo que aqueles que definiam as culturas ocidentais, pelo que se manifestou a urgência de ampliar o conceito de representatividade cultural a objetos e comportamentos culturais até ao momento considerados irrelevantes. Não obstante, também nos países industrialmente desenvolvidos se começou a estender o interesse a testemunhos culturais até então considerados marginais, inferiores ou subalternos, como é o caso das culturas campesinas ou agrárias ou das próprias atividades industriais.
3. Na interpretação de Françoise Choay (Choay, 2001: 219), a noção de “complexo de Noé”, quando aplicada ao patrimônio cultural, define a tendência da sociedade contemporânea para colocar, ao abrigo de um teto patrimonial comum, um conjunto exaustivos de novos bens culturais, que foram consagrados enquanto tal a partir da década de 1970. Para Choay, a alteração paradigmática desenvolvida em torno do patrimônio cultural decorreu da “tripla extensão” – tipológica, cronológica e geográfica – dos bens culturais e foi acompanhada pelo crescimento exponencial dos respetivos públicos.
4. Fundado em 1978, por ocasião do III Congresso Internacional para a Conservação dos Monumentos Industriais, realizado em Estocolmo, o International Committee for the Conservation of the Industrial Heritage (TICCIHI), é a instituição que atualmente coordena os esforços para a salvaguarda do patrimônio industrial, a um nível mundial, promovendo a realização de seminários e congressos de ampla difusão sobre esta temática.
5. Anteriormente à promulgação da Carta de Nizhny Tagil, já em 1959 o Council for the British Archeology havia definido o monumento industrial como “qualquer construção ou estrutura fixa de outro género, pertencente ao período da revolução industrial que, por si só ou conjuntamente com as instalações ou equipamentos essenciais, ilustra o nascimento e o desenvolvimento de processos industriais e técnicos, incluídos os meios de comunicação”. Posteriormente, em 1965, o Ministry of Public Buildings and Works reconhece a equivalência entre monumentos industriais e os sítios arqueológicos tradicionais, com a consequente extensão dos benefícios da tutela legal. Consequentemente, desde a década de 1970 que existem em Inglaterra vários organismos encarregues de administrar as áreas arqueológicas industriais (González-Varas, 1999: 65).
6. Informação recolhida no site , acedido no dia 6 de Março de 2016, às 19h18.